Os filmes do cinema mudo foram as primeiras imagens que me vieram à cabeça durante a estréia de Gustavia, no pomposo Théâtre de Grammont, que o Festival de Dança de Montpellier apresentou em sua última edição, em julho de 2008. Não foi à toa. Para a criação conjunta, as consagradas artistas Mathilde Monnier e Maria La Ribot utilizaram recursos cômicos que provocaram riso e estados de humor na platéia como aqueles empregados em películas de Charles Chaplin, Buster Keaton, Oscarito, Peter Sellers, Tati, entre tantos outros. Cena após cena na caixa preta, que tanto remete ao teatro quanto ao cinema, Gustavia é a arte de transformar incompetência em competência, à maneira das gags e da farsa.
Movidas pelo interesse no burlesco, na mulher, na idade em que se encontram, na curiosidade de conhecer, na história, no teatro e na dança, as criadoras levaram 12 semanas para pesquisar (e inventar!) um corpo arraigado no exagero, na repetição e no acidente. Engajada no registro em vídeo do processo criativo, La Ribot conta: “desde o primeiro encontro não sabíamos muito bem o que queríamos ou quais poderiam ser nossos interesses em comum além do óbvio, e sem quase nenhuma preparação até a estréia. Tivemos que encontrar, também, um sistema de trabalho”.
Foram diversas etapas até Gustavia tomar forma: “no começo, a base era uma idéia de improvisarmos na hora, e trabalhávamos em dueto. Depois passamos a uma outra fórmula, mais divertida: primeiro, uma propunha alguma coisa e a outra observava e, depois, a outra continuava a proposta e a primeira é que observava, muitas vezes descompondo, fragmentando, copiando, parodiando, exagerando, contrariando, minimizando cada proposta. Logo esse sistema foi tornando-se complexo. Nos asseguramos de que a base de todo material encontrado era das duas, aplicável a um momento ou a outro, que pertencia a uma ou a outra hierarquia e que, sem dúvida, era suscetível de alterações profissionais, interpretação, troca e questionamentos. Foi uma etapa divertidíssima”, revela a coreógrafa.
A composição do espetáculo era a empreitada seguinte e como todo processo artístico, por mais curto que seja, sofre inúmeras transformações a partir de uma idéia ou imagem inicial, conforme o relato de LaRibot “Logo começamos a construir com tudo o que tínhamos, vieram materiais de uma ou da outra, e já com um pouco mais de reflexão, ainda que sempre sob um ritmo frenético, rápido e dinâmico. No final de maio quase tudo havia sido reconsiderado. Algumas coisas ficaram iguais a dos primeiros dias, mas, em geral, tudo mudou mil vezes (muito!). Surpreendentemente, a relação entre nós continua igual, cada uma por si só, (porém) pensando na outra”.
Riquezas são diferenças*
Embora com trajetórias e contextos artísticos distintos Maria & Mathilde se conhecem desde 1987 por ocasião de uma apresentação da artista francesa em terras madrilenhas. Como lembra La Ribot: “eram os maravilhosos anos 80″ e a vida cultural fervilhava com festivais, como o Madrid en Danza. Mas é a partir de 1999 que a relação se estreita e as trocas se tornam mais freqüentes até culminar com a decisão de criar algo que veio a ser Gustavia.
“Mathilde e eu nos parecemos em muitas coisas. Fundamentalmente, as duas se tornaram coreógrafas muito jovens, antes de passar pela experiência de intérprete durante muito tempo. Ambas também têm bom sentido da prática. Por outro lado, essas similitudes têm um desenvolvimento vital e profissional completamente oposto, que para mim é muito interessante. Mathilde é órfã desde muito jovem, eu tenho pais muito protetores. Mathilde conhece um êxito incrível desde seu primeiro trabalho, é apoiada e tem meios econômicos e profissionais para crescer”, de acordo com Maria, que viveu uma história bem diferente.
Essas diferenças têm a política cultural como um dos seus principais motivos. Enquanto nos anos 80 e 90 o estado francês investiu consideravelmente no desenvolvimento da dança em seu território ao implantar postos de trabalho, centros de formação e criação, bibliotecas especializadas e festivais; a Espanha mal conhecia a democracia e não haviam investimentos regulares e contínuos para formação, investigação e nem para produção. Os projetos não tinham continuidade e dependiam, como ainda hoje em grande parte dos lugares, da paixão de seus produtores e de parcerias colaborativas. Mathilde e Maria eram jovens e protagonistas de suas situações econômico-sociais.
De lá para cá, além da produção sólida como intérprete e coreógrafa, a bailarina francesa dirige, hoje, entre outras atividades, o programa ex.e.r.ce, uma formação dirigida à profissionais, do Centre Chorégraphique National Montpellier Languedoc-Roussillon. Em 2008, dos nove jovens artistas selecionados entre vários países para estudar no programa, dois são brasileiros e experimentam o currículo experimental, o paranaense Neto Machado e o paulista Thiago Granato. Localizado no ex-convento Saint Gilles, fundado em 1357, mais conhecido hoje como Convento das Ursulines, pois foi a congregação que tomou comando do lugar em 1641, a construção foi restaurada e, agora, com infra-estrutura adequada, sedia o CCNM e o Festival Montpellier Danse, ambos criados pelo célebre bailarino e coreógrafo Dominique Bagouet, falecido em 1992. Clicando no link acima você pode ver imagens do local, que adota um programa de formação mutante, repensado a cada ano, mas com propósitos/princípios bem claros: criar, formar, pesquisar, pensar e fazer dança contemporânea.
Já Maria é madrilenha mas vive hoje em Genebra, depois de uma temporada de seis anos em Londres. Sua obra modificou a história da dança ao tratá-la como live art e criar peças que se constituem nas fronteiras da dança contemporânea com a performance, as artes visuais e o vídeo. Na última década, ela desenvolveu uma série crítica e bem humorada, chamada Proyecto Distinguido. Dividido em 13 Piezas Distinguidas (1993), Más Distinguidas (1997) e Still Distinguised (2000) são solos curtos com duração entre 30 segundos e 7 minutos, onde a performer brinca, ironiza, provoca e, com certeza, (se) diverte com objetos, músicas, mensagens escritas, e também no silêncio. O corpo é uma folha em branco (por isso a insistência com o nu) e isso é central nas performances. As “peças” foram tratadas como obras dentro do mercado das artes e todas foram vendidas à “proprietários distintos”, como Divana, da série Más Distinguidas, cuja proprietária é Mathilde. Além de terem seus nomes postos ao lado dos títulos, podem assistí-las gratuitamente em qualquer lugar do mundo. No Brasil, ela apresentou Más Distinguidas, em São Paulo, no SESC Pompéia, e em Belo Horizonte, durante a programação do então Festival Internacional de Dança, em 2000 e, por fim, Despliegue, em 2002, no Itaú Cultural, também em São Paulo.
Lado a lado na estrada
Na cena final de Gustavia, Mathilde & Maria estão lado a lado, cada uma em cima de banco, digo, pedestal. Num streaptease de palavras, falam pelos cotovelos, uma por cima da outra enquanto fazem gestos para expressar as onomatopéias e outras expressões que utilizam. O conteúdo do blá-blá-blá são elas próprias: as mulheres ou, um certo feminino. A platéia se diverte com frases: “era uma mulher tão grande, mas tão grande, que cabia um cavalo dentro dela”, “mulher corta tudo, tira pêlo daqui, depila ali”, “ela tinha tanto leite que podia fazer do peito uma metralhadora, tá tá tá tá tá”, “tinha um quadril enorme do lado direito, tinha um quadril enorme do lado esquerdo e quando ela andava, paf paf paf”. Outras falas referem-se a movimentos feitos em cenas anteriores, como “uma mulher entra, pega o pé e põe na cabeça”. Outra frase tem uma sonoridade mui peculiar no francês “femme meure de faim” (mulher morre de fome).
Depois da estréia no Festival de Dança de Montpellier e da apresentação no Impulstanz, em Vienna (15 a 18/7), Gustavia já é uma estrela com agenda cheia: segue para o Dansens Hus, em Estocolmo (4 e 5/10); o Centre Pompidou, em Paris (15-19 & 22-26); o Festival Circular, em Porto (27/10); o Mercat de les Flors, em Barcelona (21-23/11) e para o Teatro Municipal, em Perpignan, na França (25/11).
Se tudo correr bem, o público brasileiro poderá conferir o espetáculo que está cotado para a programação do ano da França no Brasil, em 2009.
* expressão retirada da música Miséria, da banda Titãs.
Maíra Spanghero
(é doutora em Comunicação e Semiótica, professora da PUC/SP e autora do livro “A dança dos encéfalos acesos” (Itaú Cultural, 2003). É também curadora do projeto Roda (SP) e editora convidada da Coleção Húmus.)
27 novembre 2008
www.idanca.net